Por Camila Marques, Dennys Camara Raissa Maia

As rádios comunitárias são elementos essenciais para a concretização do direito à liberdade de expressão em qualquer país. Contudo, enfrentam enorme dificuldade em existir no Brasil. Isso porque, além de muitos entraves burocráticos para a sua instalação e manutenção, as rádios comunitárias sofrem um verdadeiro processo de criminalização pelo Estado brasileiro, o qual dificulta a concessão de licenças, determina o fechamento de estúdios de transmissão, apreende equipamentos e processa judicialmente os responsáveis pela rádio na esfera criminal. Desse modo, as rádios comunitárias são constantemente fragilizadas e impossibilitadas de cumprir um papel muito relevante na concretização de uma mídia plural, diversa e democrática.

Existe uma lei específica que regulamenta as rádios comunitárias. Acontece que esta norma por mais que reconheça no mundo jurídico a importância e existência de tais rádios, acabou por trazer algumas limitações indevidas e prejudiciais ao seu funcionamento, como por exemplo, o baixo alcance de transmissão, o uso de um único canal FM, a ausência de proteção contra interferências, a restrição de meios para sustentabilidade, entre outros problemas. Ainda sobre os entraves legais e burocráticos, os pedidos ao Ministério das Comunicações para obtenção de outorgas, em alguns casos, pode levar até 15 anos. Além disso, a ANATEL e a Polícia Federal realizam uma fiscalização desproporcionalmente severa e rígida. Conclui-se, portanto, que não há uma política pública que incentive o exercício e a criação de rádios comunitárias, o que ocorre é justamente o contrário.

Além dos problemas citados, as rádios comunitárias sofrem com a criminalização de suas atividades, pois seus responsáveis são processados penalmente com base no art. 70 da Lei 4.117/62 (pena de 1 a 2 anos de prisão) e no art. 183 da Lei 9.472/97 (pena de 2 a 4 anos de prisão). De acordo com análise realizada pela ARTIGO 19 de 657 acórdãos julgados entre 2009 e 2012 nos Tribunais Regionais Federais, ficou claro que a maioria das ações contra as rádios comunitárias são de natureza penal (54%). O artigo 21 da Lei das Rádios Comunitárias já prevê as sanções cabíveis e todas são de natureza administrativa – advertência, multa e revogação da autorização – as quais possuem um caráter reparador muito mais adequado do que a ultima ratio penal.

A aplicação de sanções penais para aquele que mantém um serviço de radiodifusão sem outorga é desproporcional. Isso porque, as sanções criminais acabam por causar autocensura, limitando a liberdade de expressão e o acesso à informação dos indivíduos, o que é uma afronta aos princípios democráticos. Além disso, a aplicação de sanções de natureza criminal podem ainda dar origem a estigmas sociais que perseguirão os responsáveis pelas rádios comunitárias durante toda a vida. Não há dúvidas, portanto, de que penalizar as atividades realizadas pelas rádios comunitárias é, no limite, criminalizar o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

Com o intuito de reverter o cenário de criminalização no Sistema de Justiça, a ARTIGO 19 desenvolveu o documento “Defesa da liberdade de expressão das rádios comunitárias no Brasil: teses jurídicas aplicáveis”. Além de teses de defesas que já foram admitidas em algum grau no Judiciário, o material estrutura de forma simplificada o contexto social, legal e jurídico em que as rádios estão inseridas.

Tendo em vista a obrigatoriedade do Estado brasileiro em cumprir os tratados e convenções de direitos humanos em que é signatário, uma das principais teses e linhas argumentativas no sentido de afastar a incidência da legislação criminal e, ainda, tratar as rádios comunitárias no âmbito civil ou administrativo é a tese do “controle de convencionalidade”.

Tal tese – “controle de convencionalidade” – consiste em verificar se a lei infraconstitucional está de acordo com os tratados e convenções de direitos humanos. Em 2004, uma emenda constitucional (incorporada pelo parágrafo 3°, do artigo 5o, CF) estabeleceu que esses tratados, se aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos, são equivalentes às emendas constitucionais, conforme estabelece o art. 5º, §3º da Constituição. E possuem, portanto, hierarquia constitucional, de forma que uma norma infraconstitucional não tem validade se afrontá-las.

Os demais tratados, situação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, da Convenção Americana de Direitos Humanos, aprovados antes da emenda, conforme entendimentos do Supremo Tribunal Federal possuem caráter supralegal, sendo hierarquicamente superiores às legislação infraconstitucional.

Ademais, o Supremo no julgamento sobre a possibilidade de prisão do depositário infiel reformulou sua anterior jurisprudência adequando o seu posicionamento ao disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, inaugurando assim o controle de convencionalidade. Desta forma, os tratados internacionais de direitos humanos, aprovados anteriormente à 2004, sujeitam a legislação infraconstitucional ao controle de convencionalidade.

Nota-se que os artigos das leis penais utilizados para sancionar penalmente as rádios comunitárias estão em desacordo com o artigo 19.3 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que impede a restrição do direito à liberdade de expressão por vias diretas ou indiretas.

Por sua vez, o artigo 19.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que apresenta o teste das três partes, afirma que o exercício da liberdade de expressão somente pode estar sujeito a restrições expressamente previstas em lei e que sejam necessárias e proporcionais em um Estado democrático para proteção dos direitos e da reputação de outros, da segurança nacional, da ordem, da saúde ou da moral pública.

Assim, a sanção na esfera penal para o exercício da liberdade de expressão, se aplicada ao testes das três partes, é desnecessária e certamente desproporcional em uma sociedade democrática para a salvaguarda dos fins legítimos elencados, sobretudo se considerarmos a existência de outros meios mais eficazes e menos gravosos, como as esferas cíveis e administrativas.

A criminalização das rádios comunitárias pelo Estado brasileiro, como uma tentativa de enfraquecer este instrumento essencial à democracia, é endêmica no Brasil. Espera-se, portanto, que este documento seja útil na defesa daqueles que são responsáveis pelas rádios comunitárias, de modo que as pessoas possam se expressar livremente, sem que haja quaisquer barreiras ilegítimas para a concretização do direito à liberdade de expressão.

 


Camila Marques – Advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

Dennys Camara – Integrante do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

Raissa Maia – Integrante do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19