No Brasil, é comum a utilização de processos judiciais com o intuito de silenciar críticas e vozes dissonantes. Nesse sentido, por diversas vezes indivíduos ou grupos que emitem opiniões críticas ou revelam determinados fatos sobre pessoas ou grupos detentores de poder acabam processados por supostas ofensas contra a honra e a reputação, o que tem como consequência um grave efeito inibidor sobre o exercício da liberdade de expressão no país.

Esse panorama coincide em larga medida com o contexto mais amplo de violações contra comunicadores[1], grupo tradicionalmente sujeito a todo tipo de tentativa de silenciamento, inclusive por meio dos processos judiciais. Um exemplo contundente desse tipo de situação é o caso do Jornal Já de Porto Alegre.

O caso teve início em 2001, quando o jornal publicou uma notícia sobre o político local Lindomar Rigotto. A reportagem, intitulada “Uma tragédia em três atos”, foi dividida em três publicações, que tratavam do suposto envolvimento do político em esquemas de corrupção e outros crimes, bem como das circunstâncias de sua morte. Após a publicação, a mãe de Lindomar, Julieta Diniz Vargas Rigotto, processou o Jornal Já por calúnia, difamação e injúria, além de requerer indenização por danos morais, a despeito do fato de que todas as matérias baseavam-se em documentos públicos, e não em meras conjecturas.

No âmbito criminal, a Justiça reconheceu que os textos tinham intuito informativo e estavam ancorados em documentos e fatos de interesse público, sem que tenha havido qualquer intenção de ofender por parte do jornal, que foi absolvido de todas as acusações. Já na esfera cível, em contrariedade a todos esses elementos e aos padrões internacionais de liberdade de expressão, foi determinado o pagamento de uma indenização, que à época era de R$ 17 mil, mas hoje ultrapassa os R$ 100 mil em valores corrigidos, montante que tem praticamente inviabilizado a continuidade dos trabalhos do jornal.

Sobre esse ponto, os organismos internacionais enfatizam que, embora restrições ulteriores à liberdade de expressão sejam possíveis e a esfera cível seja o caminho mais adequado para concretizá-las, diversos critérios devem ser seguidos para que a restrição seja considerada justificável. Em primeiro lugar, destaca-se a recomendação para que jamais esse tipo de ação seja proposta em nome de pessoas já mortas, uma vez que o tipo de dano que os padrões internacionais consideram passível de reparação deve ser pessoal e direto.

Além disso, o interesse público contido na publicação deve sempre ser levado em consideração a fim de confrontar sua relevância social com as supostas ofensas por ela causadas; no mesmo sentido, exige-se que pessoas públicas demonstrem maior tolerância a críticas e ao escrutínio da sociedade, o que não foi observado no caso.

Por fim, indenizações demasiadamente elevadas, como no exemplo do Jornal Já, representam por si só uma afronta ao direito à liberdade de expressão. Os valores cobrados, evidentemente desproporcionais, têm como consequência um efeito silenciador sobre a liberdade de expressão que pode ser tão eficaz quanto a imposição de sanções penais, razão pela qual a Artigo 19 apresentou em 2013 uma denúncia sobre o caso frente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, buscando a responsabilização do Estado brasileiro pelas violações cometidas contra o jornal, bem como a reparação dos danos causados.

Os efeitos duradouros da completa desestabilização do Jornal Já após a referida condenação são visíveis e desdobram-se em outros tipos de violações contra a liberdade de expressão e o trabalho dos comunicadores. Diante das crescentes dificuldades econômicas enfrentadas a partir da condenação, o jornal contraiu dívidas a fim de garantir sua sustentabilidade, dentre as quais uma decorrente de um empréstimo ao Banrisul. Recentemente, como parte do processo de execução dessas dívidas, três computadores e três impressoras da redação foram ilegalmente apreendidos[2].

A ilegalidade da ação decorre de diversos motivos, com destaque para o fato de que os computadores e impressoras apreendidos são equipamentos imprescindíveis ao exercício da profissão dos integrantes do jornal (o que afasta a possibilidade de penhora, segundo a legislação brasileira) e continham diversos projetos editoriais em andamento, sem que tenha sido dada a oportunidade para que os profissionais fizessem backup do material.

A evidente arbitrariedade dessa medida, acentuada pelo histórico de restrições impostas ao jornal, foi levada ao conhecimento do Ministério Público Federal, que por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio Grande do Sul instaurou um procedimento preparatório com o fim de “apurar possível lesão às liberdades de expressão e de imprensa do Jornal Já, após apreensão de material jornalístico”. Os equipamentos foram enfim recuperados no dia 22 de fevereiro, 29 dias após a apreensão e em momento no qual boa parte do material lá armazenado já havia perdido seu sentido.

Os mecanismos para a repressão à liberdade de expressão de comunicadores são diversos e, ainda que a violação não se dê na forma de um atentado contra a vida ou de uma condenação criminal, é importante enfatizar que também os processos judiciais podem gerar consequências drásticas. A imposição de uma indenização desproporcional em razão de uma reportagem crítica e de interesse público foi capaz de criar dificuldades crescentes à continuidade do trabalho jornalístico, que culminaram na situação atual e, em última instância, representam a redução da circulação de informações e da pluralidade de ideias na região.

 



Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.

Mariana Rielli é advogada da Artigo 19.

Raissa Maia é advogada da Artigo 19.

Acesse em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-14/opiniao-justica-liberdade-expressao-jornal