Por Camila Marques, Mariana Rielli e Luiz Perin

Observando-se os projetos iniciais que deram origem ao material que em breve será votado no plenário da Câmara, é fácil perceber que o seu espírito era o da proteção da honra dos indivíduos na internet, tanto que todos, de alguma forma, propunham o aumento de penas para esse tipo de conduta, se praticada por meios digitais. Quanto a isso, o documento final aprovado no dia 6 de outubro na CCJ foi amenizado, retirando-se o aumento de pena para essa hipótese específica, uma vez que o próprio artigo 141 do Código Penal já prevê aumento em caso de utilização de ”meios que facilitem a divulgação”, nos quais a internet se inclui. Entretanto, o texto atual ainda contém elementos que decorrem dessa intenção de proteção da honra que, da forma como é colocada, mostra-se desproporcional e prejudicial a outros direitos.

Um desses elementos, que se encontra na redação final do relatório do deputado Juscelino Filho (PRP-MA), é a duplicação da pena para crimes contra honra cometidos na internet caso a infração provoque a morte de alguém, hipótese em que também se tratará de crime inafiançável (como ocorre, por exemplo, com racismo, tortura e ação de grupos armados contra o Estado), sujeito à iniciativa do Ministério Público, uma exceção à regra que prevê que os crimes contra a honra dependem, para seu processamento, da vontade do ofendido, que é quem aciona o Sistema Judiciário.

Em outras palavras, quem publicou o texto poderá ser responsabilizado criminalmente, de forma mais rigorosa, como indicam as mudanças processuais mencionadas, por ato de terceiro que cause a morte de alguém (por exemplo, caso a pessoa supostamente difamada seja vítima de homicídio), o que é incompatível com os princípios do direito penal brasileiro.

Além disso, há o problema de como se verificar a relação direta entre o texto publicado e a ação do terceiro que pratica o homicídio. Mais preocupante ainda é o fato de que, de acordo com recentes interpretações do Judiciário em julgamentos que envolvem ofensas contra a honra no contexto virtual, é possível que um indivíduo sofra sanções pelo mero compartilhamento de conteúdo, de forma que todas essas medidas agravantes poderiam recair sobre alguém que nem sequer é o autor de determinada publicação.

O objetivo de tutelar a honra também se faz presente na alteração do artigo 19, §3°-A do Marco Civil da Internet, que inclui uma espécie de ”direito ao esquecimento” no direito brasileiro. Isso significa que, pelo projeto aprovado na comissão, qualquer pessoa pode requerer judicialmente a retirada imediata da rede de qualquer conteúdo que, de alguma forma, considere ofensivo.

Apesar de a discussão de fundo ser bastante complexa, a intenção por trás de tais medidas é, novamente, aumentar os instrumentos de proteção à honra dos indivíduos às custas de outros direitos de igual importância, em especial, a liberdade de expressão e o direito à informação. Não é à toa que na Europa haja uma preocupação notável com o balanceamento dos direitos em jogo em casos de direito ao esquecimento, especialmente no que se refere ao interesse público em determinadas informações, como se observou no julgamento da Corte Europeia de Justiça que obrigou o Google a remover de seu buscador links para conteúdos “irrelevantes” que tratem de dados pessoais quando for solicitado.

Trata-se da mesma ideia que orienta o princípio da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, segundo o qual as pessoas públicas, pela natureza de sua função, devem ser mais tolerantes em relação a críticas do que o cidadão comum.

No contexto em que são colocadas, essas medidas incluídas no projeto final que será levado ao plenário da Câmara dos Deputados somam-se a todas as outras iniciativas que, supostamente, servem para proteger a honra e reputação dos indivíduos em questões legítimas, mas que, por sua excessiva amplitude, podem ser utilizadas para silenciar vozes opositoras ou impedir o acesso a informações públicas (o que, é importante ressaltar, já ocorre com frequência com base na legislação vigente).

Para além dessas relações mais claramente definidas, direitos como a privacidade também podem ser prejudicados nesse quadro — o projeto, cujo intuito supostamente era coibir os crimes contra a honra, resultou em um documento com outro dispositivo problemático, que prevê a obrigatoriedade de que os provedores de conexão e serviços comecem a reter e organizar os dados cadastrais, com a adição de CPF e endereço de e-mail, alargando as hipóteses já previstas no Marco Civil da Internet. Além disso, mesmo com o aumento do escopo, tais dados ainda podem ser requeridos para que sejam utilizados por quaisquer autoridades competentes no curso de investigações.

É importante lembrar que os projetos originais 215, 1.547 e 1.589, de 2015, inserem-se em um contexto geral de aumento das hipóteses de criminalização das ofensas à honra, na contramão de todo o debate internacional, que entende que mecanismos civis de reparação, nesses casos, seriam suficientes. O Projeto de Reforma do Código Penal (PLS 236/2012) que tramita no Senado também amplia as penas dos crimes contra a honra, apesar de recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos irem em sentido contrário, pois consideram que as medidas penais são excessivas e têm forte efeito inibidor à liberdade de expressão, direito tão consagrado e importante quanto à reputação e à honra que tais legislações visam proteger.

Sendo assim, embora a previsão de aumento de pena pelo cometimento de crime contra a honra por meio da internet tenha sido retirada da versão final do PL 215, o espírito legislativo que deu origem a essa proposta inicial continua presente, bem como em um quadro geral de projetos que criam novas formas de punir criminalmente quem, de alguma forma, ofenda a honra e a reputação de outros indivíduos, o que é mais grave na medida em que a maioria desses processos tem como autores pessoas públicas. Em um ambiente historicamente pouco propício às críticas a pessoas e grupos poderosos (cenário que a internet vem ajudando a mudar), quaisquer iniciativas nesse sentido merecem atenção e cuidado, porque seus danos a direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, são imensos.

 


 

Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.

Mariana Rielli é estudante de Direito e integrante da organização Artigo 19.

Luiz Perin é membro da área de Direitos Digitais da Artigo 19.