Por Camila Marques e Mariana Rieli

Na última quarta-feira (19), o Estado de São Paulo foi condenado judicialmente pelos atos de violência cometidos pela Polícia Militar (PM) em manifestações de rua e outros eventos públicos nos últimos anos. A sentença, expedida pelo juiz Valentino Aparecido de Andrade, da 10ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, determina o pagamento de R$ 8 milhões em indenização por danos morais coletivos, a serem depositados em um fundo de proteção dos direitos difusos, e ainda a elaboração de um protocolo que regulamenta o uso da força policial em manifestações.

A decisão foi tomada com base na Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 2014. Respaldada por oito exemplos contundentes de reuniões públicas em que a PM fez uso excessivo e desproporcional da força, a Defensoria buscou que o Judiciário determinasse, dentre outras coisas:

1) a proibição do uso de armas de fogo e a limitação do uso de armamentos menos letais, como balas de borracha, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta;

2) a elaboração de um protocolo geral de uso da força policial baseado em padrões internacionais;

3) a proibição de se restringir protestos por motivos de horário e local de sua ocorrência;

4) a obrigatoriedade de identificação policial de forma clara e vísivel.

Os pedidos foram acatados pelo juiz Valentino Aparecido de Andrade, que estipulou multa diária de R$ 100 mil caso as medidas não fossem tomadas em um prazo de 30 dias após a notificação.

Trata-se, evidentemente, de uma decisão emblemática e positiva para a garantia do direito de protesto no Brasil. Ela representa um importante marco se comparada a várias decisões restritivas emitidas pelo Judiciário brasileiro, que, nos últimos anos, se notabilizou por decisões que endossaram, mesmo que por omissão, a violência policial em manifestações. Dois ilustres exemplos são os casos dos fotógrafos Sérgio Silva e Alex Silveira, culpabilizados por ferimentos que sofreram nos olhos após serem atingidos por balas de borracha disparadas na região de seu rosto por policiais, enquanto realizavam a cobertura de manifestações em São Paulo [1]. Ambos perderam a visão de um dos olhos.

Desde junho de 2013, centenas de manifestantes e comunicadores ficaram feridos por balas de borracha, estilhaços de bomba e golpes de cassetete em ações violentas da polícia em manifestações. Tais ações foram marcadas pela intensa desproporcionalidade e arbitrariedade do emprego da força, conforme inúmeras imagens produzidas nos eventos denunciam.

Para agravar ainda mais o cenário e atestar seu caráter sistemático, no período subsequente a PM aprimorou suas técnicas de repressão nas ruas e aumentou seu arsenal de armamento menos letal. Mais recentemente, posicionamentos institucionais respaldaram novas medidas restritivas do direito de protesto, como a exigência de que organizadores comunicassem com antecedência, local, horário e trajeto de manifestações, vista como excessivamente burocrática. Para além disso, a exigência do trajeto pode ser entendida como uma prática inconstitucional.

Na prática, a questão do aviso prévio e a ausência da indicação do trajeto serviu como justificativa para repressão policial em alguns casos antes dos processos sequer iniciarem, representando um impeditivo à própria ocorrência de alguns protesto.

Fica claro o nível alto de complexidade que o cenário de violações a protestos atingiu, o que exige medidas igualmente complexas para trabalhar sobre as causas do problema. Assim, a sentença judicial da 10ª Vara de Fazenda Pública merece destaque por não buscar apenas uma indenização do Estado de São Paulo à sociedade, mas uma verdadeira reestruturação da prática policial neste campo, com a criação de um protocolo do uso da força e com especial atenção para coibir medidas institucionais excessivamente restritivas. Tratam-se, em ambos os casos, de recomendação de organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organizações dos Estados Americanos) e a Organização das Nações Unidas. [2]

Apesar da vitória para a garantia dos direitos humanos que a sentença representa, é importante ressaltar que o Estado de São Paulo ainda pode recorrer contra a decisão. Além disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), órgão responsável por julgar o caso na segunda instância, já entendeu em decisão anterior que não deve interferir nessa questão, que estaria sujeita à ação discricionária do Poder Executivo. Tal posição ignora a noção consolidada de que o Judiciário deve agir diante de violações sistemáticas de direitos humanos. Caso o TJ-SP seja acionado e reforme a sentença ou inviabilize a ação como um todo, estará não só fechando os olhos à Constituição, mas também ignorando as obrigações internacionais de direitos humanos que vinculam todo o Estado brasileiro.

 


[1]Ambos foram vítimas do uso indiscriminado de armamento menos letal e perderam a visão de um dos olhos. Ao recorrer ao Judiciário para obter uma indenização do Estado, os dois receberam respostas semelhantes, negando o ressarcimento e ainda atribuindo a culpa dos ferimentos a eles próprios, por terem assumido o risco ao se postarem na ”linha de tiro” para cobrir os protestos.

[2]Sobre uso da força, vide capítulo do informe anual de 2015 da CIDH:http://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2015/doc-es/InformeAnual2015-cap4A-fuerza-ES.pdf. Sobre notificação prévia e imposição de trajetos em manifestações, vide ”Medidas efetivas e boas práticas para garantir a promoção e proteção dos direitos humanos no contexto de protestos pacíficos. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights (21 January 2013), UN Doc. A/HRC/22/

 


Camila Marques é Advogada e Coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

Mariana Rielli é Estudante de Direito e integrante do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19