Por Camila Marques, Karina Quintanilha e Natália Damazio

A liberdade de expressão e manifestação são direitos amplamente garantidos pelos princípios, dispositivos e jurisprudência internacionais, sendo considerados parte essencial para o bom funcionamento dos sistemas democráticos nas sociedades contemporâneas. Apesar dos postulados internacionais reiteradamente ratificarem a centralidade de seu papel no controle da atividade estatal e da relevância atribuída a tal direito no texto constitucional, ressalta-se um notável desacordo com a posição que o judiciário vem tomando no que concerne aos protestos sociais. Decisões que contrariam de forma contundente tais paradigmas tornam-se um sintoma de uma afinidade dos poderes executivo, legislativo e judiciário em dar tratamento penal a pleitos de cunho social, recrudescendo cada vez mais a criminalização frente aos movimentos sociais e demandas da população.

Identificamos como ponto central para a compreensão de tal fenômeno uma decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 13 de maio de 2014, em sede de Habeas Corpus (HC 112932), impetrado contra decisão do Superior Tribunal Militar que buscava determinar a competência para o julgamento do delito de desacato realizado por civil contra militares do exército enquanto estes estavam no exercício de uma operação de garantia de lei e ordem. A contrário senso do entendimento que vinha sendo adotado pela Suprema Corte, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que compete à Justiça Militar processar e julgar uma civil acusada de desacatar membros das Forças Armadas durante processo de pacificação no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ).

Essa decisão é especialmente problemática, pois proferida pela instância máxima de julgamento do país, que tem como funções precípuas a salvaguarda do texto constitucional, a garantia da interpretação do judiciário conforme os direitos fundamentais previstos, além de exercer, conjuntamente com demais órgãos do Estado, o controle de convencionalidade de nossa legislação para com as normas internacionais de direitos humanos. A base para o julgamento, tendo em vista a proteção dos direitos humanos prevista no texto constitucional e nas normas internacionais, deveria ser a real verificação da necessidade e proporcionalidade de atribuir qualquer sanção, ainda mais de natureza penal, a um indivíduo, pelo exercício da liberdade de expressão. No caso, a atribuição da norma militar – que deveria ser aplicada a um civil somente em caso de estado de exceção – a uma moradora de uma favela que se manifestou contra a atitude dos militares, revela uma preocupante tendência da justiça em censurar qualquer forma de expressão para proteger a honra de autoridades públicas em detrimento dos direitos fundamentais do cidadão.

O crime de desacato no Código Penal brasileiro (pena de 6 meses a 2 anos de detenção) é um instrumento que protege de forma desproporcional a honra de autoridades contra possíveis críticas, muitas vezes legítimas. Sua previsão no Código Militar tem função ainda mais autoritária. Na prática, esse crime está muito relacionado às rondas policiais nas regiões periféricas das cidades e é utilizado indiscriminadamente, inclusive quando alguém abordado se recusa a realizar algum procedimento que seja ilegal, por policiais civis e militares. Como já recomendou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, é evidente a necessidade de descriminalizar esse tipo penal, uma vez que são verdadeiras artimanhas legais para abafar o debate público.

O desacato tem sido aplicado no contexto dos protestos desde junho de 2013 causando forte efeito inibidor sobre a livre manifestação. Ainda nesse sentido, prisões arbitrá- rias com aval dos juízes e aplicação de artigos penais inadequados para lidar com os manifestantes têm se mostrado um eficaz instrumento para limitar a liberdade de expressão. Por exemplo, em Belo Horizonte, um juiz liberou um grupo de sete manifestantes apenas na condição de que eles não participassem de quaisquer novos protestos, pessoalmente ou online. Entendimentos semelhantes foram adotados também no Rio de Janeiro.

O primeiro julgamento a condenar um indivíduo após a detenção durante um protesto veio em 2 de Dezembro de 2013. Um homem sem-teto, Rafael Vieira, foi condenado a cinco anos de prisão por estar em posse de duas garrafas de material de limpeza, mesmo com ausência de potencial de lesividade. Houve também decisões judiciais que proibiram manifestações em torno dos estádios durante a Copa das Confederações e casos de adolescentes que tiveram a sua internação provisória decretada apenas por estarem presentes em uma manifestação em que houve “abuso de direito” independente da impossibilidade de individualização da conduta no caso.

A recente atuação dos magistrados nessas questões revela profundo desconhecimento sobre padrões internacionais de direitos humanos e descaso quanto ao papel central da liberdade de expressão em uma democracia ainda em cotidiana consolidação. Torna-se imprescindível que o Judiciário tenha uma postura firme na proteção dos direitos fundamentais, sem reiterar a criminalização como forma de calar as ruas.

Artigo integrante deste material.

 


 

Camila Marques é Advogada da Artigo 19

Karina Quintanilha é Advogada da Artigo 19

Natália Damazio é Advogada da ONG Justiça Global e mestre em Teoria e Filosofia do Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)