O cenário no Brasil para magistrados que manifestam posições progressistas, em favor da defesa dos direitos humanos, é de intimidação. É o que demonstra o caso do juiz Hugo Cavalcanti Melo Filho, do Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região (Pernambuco), que vem sofrendo um processo administrativo disciplinar em razão de ter proferido despacho em que manifestava sua adesão à Greve Geral do dia 28 de abril e expressava repúdio às reformas sociais em curso no país. A seletividade do processo é revelada com clareza quando se observa que houve magistrados que se expressaram em sentido oposto, declarando apoio às referidas reformas, e que não se viram alvos de procedimentos desta natureza em razão de suas manifestações.
Inclusive, o despacho que deu origem ao processo disciplinar, datado de 27 de abril de 2017, também remetia-se a um ofício emitido anteriormente pelo Presidente do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, em que foi recomendada a não-adesão à Greve. Este caso, bem como o quadro geral em que se insere, representa uma afronta à liberdade de expressão, evidenciada também pela excessiva amplitude e insuficiente motivação para a abertura do processo. Os fundamentos legais para a instauração do processo administrativo disciplinar pela Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região são os arts. 35, IV e VII, e 36, III, da LOMAN, e arts. 1º, 7º e 22 do Código de Ética da Magistratura, que, em síntese, dispõem sobre deveres de urbanidade, cortesia, prudência, diligência, honra e decoro.
Os dispositivos ainda versam sobre a vedação à atividade político-partidária por parte do magistrado. Apesar da menção aos referidos artigos, o despacho que deu início ao processo disciplinar refere-se apenas à existência de ‘’indícios de que o magistrado tenha incorrido, no mínimo, em excesso de linguagem (…)’’, sem que haja remissão direta aos trechos do despacho supostamente maculados por estes vícios ou a qualquer violação objetiva cometida pelo magistrado do ponto de vista de seus deveres funcionais.
Assim, verifica-se que a instauração do processo contra o juiz Hugo Melo centra-se em alegações genéricas, o que contraria princípios internacionais, como aqueles consolidados no relatório ‘’Garantias para a Independência dos Operadores de Justiça’’ da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é enfático a respeito da necessidade de que ‘’as práticas das autoridades encarregadas de justificar os processos disciplinares se adequem aos padrões interamericanos no que tange à liberdade de expressão.’’
Tais padrões, aos quais se somam entendimentos de outros organismos como a ONU, partem da premissa de que os membros do judiciário têm, assim como outros cidadãos, direito à liberdade de expressão, e que é imprescindível que este direito lhes seja plenamente assegurado para que se concretizem outros princípios caros ao Sistema de Justiça, como a independência judicial e o pluralismo. Em relação à liberdade de expressão, ainda, é consolidado por documentos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, que quaisquer restrições a este direito, para que sejam legítimas, devem observar parâmetros estritos, dentre os quais está a necessidade de clareza, necessidade e proporcionalidade das medidas restritivas.
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A situação observada no Brasil e evidenciada pelo caso em discussão é contrária a estes princípios, já que prevalece a fragilidade dos motivos para a instauração de processos disciplinares em casos que envolvam a expressão de opiniões ou a veiculação de posicionamentos jurídicos minoritários, o que sugere um controle ideológico enviesado e incompatível com preceitos democráticos.
O art. 41 da LOMAN estabelece que ‘’salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir’’. Entretanto, ‘’impropriedade’’ e ‘’excesso de linguagem’’ são termos por demasiado amplos e suscetíveis a interpretações distorcidas, que podem levar a uma aplicação seletiva de sanções disciplinares contra determinados discursos, em especial aqueles voltados à defesa dos direitos humanos e a posições consideradas progressistas, em geral.
Outros casos semelhantes ao do juiz Hugo Melo corroboram essa ideia. Pode-se falar, a título de exemplo, do caso dos/as juízes/as Kenarik Boujikian, José Henrique Torres, Dora Aparecida Martins e Roberto Corcioli Filho, que foram vítimas de um procedimento disciplinar instaurado após subscreverem manifesto público que pedia a denúncia das violações de direitos humanos cometidas na reintegração de posse do ‘’Pinheirinho’’ à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Em que pese o posterior arquivamento do procedimento, a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, em seu parecer, criticou duramente a manifestação dos magistrados e opinou no sentido de que deveriam ter assinado o ‘’indigitado manifesto’’, o que tolhe diretamente sua liberdade de expressão, além de demonstrar novamente que manifestações alinhadas à defesa dos direitos humanos e contrárias à atuação abusiva do Estado acabam sendo alvos preferenciais de procedimentos e sanções disciplinares. Este exemplo, junto a uma série de outros casos semelhantes, foi levado à Comissão Interamericana em uma Audiência Temática sobre independência judicial e liberdade de expressão realizada em maio de 2017, ocasião em que o organismo reiterou a necessidade de que os padrões interamericanos e os relatórios específicos sobre o tema sejam respeitados pelo Brasil.
O processo administrativo disciplinar voltado contra o juiz Hugo Cavalcanti Melo Filho representa flagrante desrespeito às normativas internas e internacionais a respeito da liberdade de expressão, bem como princípios específicos já consolidados acerca da garantia deste direito fundamental aos magistrados, tanto no exercício de suas funções, como enquanto cidadãos comuns. Mais do que isso, também evidencia a parcialidade na instauração de procedimentos disciplinares e aplicação de sanções contra juízes cujas opiniões e posicionamentos jurídicos sejam voltados à defesa dos direitos humanos, o que sufoca o debate acerca de temas de evidente interesse público.
A sessão que decidirá acerca do prosseguimento ou não do processo disciplinar contra o magistrado está marcada para esta terça-feira (01) e espera-se que a Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região decida pelo arquivamento, de forma a evitar maiores constrangimentos à liberdade de expressão e ao pluralismo na magistratura.
Camila Marques é Advogada e Coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19.
Mariana Rielli é Estudante de Direito e integrante do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19.
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