Por Camila Marques e Mariana Rieli
No último dia 7 de junho, a mídia divulgou que cinco profissionais de imprensa do Paraná estão sendo alvos de múltiplos processos por parte de juízes e promotores de justiça sob alegação de danos morais. O motivo foi a publicação de uma reportagem sobre os ‘supersalários’ destes servidores, demonstrando que a soma de todos os rendimentos ultrapassava o teto do funcionalismo público.
Este caso específico é representativo de uma realidade mais ampla e extremamente preocupante em ao menos dois aspectos: por um lado, revela o uso indiscriminado de processos judiciais contra comunicadores, que, no exercício de sua profissão, acabam por contrariar interesses de pessoas em cargos de poder. Por outro, evidencia um problema sério de transparência e acesso à informação, na medida em que o tipo de divulgação em questão diz respeito a informações de interesse coletivo, cuja publicidade é garantida por lei e interpretações judiciais consolidadas, mas ainda gera contestações diante da enraizada cultura de sigilo do país.
Comunicadores estão constantemente sujeitos a uma série de violações ao seu direito à liberdade de expressão. Tais violações ocorrem em um espectro que compreende desde homicídios e ameaças [1] até a instrumentalização de processos judiciais como forma de silenciamento, algo que ocorre em elevados números no Brasil.
A questão em jogo, neste segundo caso, é que qualquer tipo de responsabilização pela manifestação de algum pensamento ou divulgação de informações significa uma restrição à liberdade de expressão e, por isso, só pode ser realizada a partir do balanceamento de direitos em suposto conflito.
A conclusão de organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre este tema, é que as responsabilizações em âmbito cível, como é o caso, devem obedecer a uma série de critérios, como a comprovação da intenção de ofender e a demonstração objetiva do dano à reputação, pois podem se revelar igualmente desproporcionais. A mera divulgação de dados oficiais relativos a salários, ainda que qualificados na reportagem como excessivos, não preenche os requisitos necessários para uma restrição justificável à manifestação dos jornalistas.
Internamente, o próprio judiciário brasileiro também confere ampla proteção à liberdade de expressão de jornalistas, afastando qualquer possibilidade de censura prévia, mas também permitindo a publicação de todo tipo de crítica, ainda que ‘dura e até impiedosa’, como foi o entendimento do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em um julgamento em 2014 [2]. Na ocasião, o ministro ressaltou que não pode haver responsabilização ‘‘(…) ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública.” Tal entendimento insere-se na lógica dos padrões internacionais segundo os quais figuras públicas devem ser mais tolerantes a críticas e a exposição, justamente pela natureza de suas funções e necessidade do controle social, assim como nos próprios princípios do direito público brasileiro, que celebra a publicidade dos atos da administração.
A discussão quanto ao caráter público da informação divulgada está no centro do segundo ponto preocupante deste caso – a ameaça a conquistas relativas a transparência e acesso à informação pública. A divulgação de salários de servidores já foi objeto de disputas judiciais, e ao decidir sobre o suposto conflito entre a publicidade e a intimidade dos servidores o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado favoravelmente à primeira, autorizando a divulgação sem restrições desse tipo de informação.
Em caso emblemático de 2012, o então ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, afirmou que “a remuneração dos agentes públicos constitui informação de interesse coletivo” [3]. Este entendimento também está de acordo com a Lei de Acesso à Informação (L12527/2011), que prevê a publicidade máxima de informações em posse de órgãos públicos, além de constar em ambas Resolução 215/2015, do Conselho Nacional de Justiça, e Resolução 89/2012, do Conselho Nacional do Ministério Público, que obrigam a divulgação dos salários dos servidores. Desta forma, a divulgação realizada pelos jornalistas no presente caso encontra-se plenamente de acordo com toda a legislação brasileira que diz respeito a transparência, acesso à informação, e publicidade da administração pública.
Percebe-se que estes processos movidos contra os jornalistas vão contra a própria ordem democrática e violam a liberdade de expressão e informação de diversas formas – de um lado, funcionam como instrumento de limitação da liberdade dos próprios jornalistas de exercerem sua profissão plenamente; de outro, buscam restringir o acesso, por parte da sociedade, de informações que são de seu interesse.
Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão da Artigo 19.
Mariana Rielli é estudante de direito e membro do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão da Artigo 19.
REFERÊNCIAS
[1] Mais informações no relatório: http://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2016/05/Relat%C3%B3rio-ARTIGO-19-Viola%C3%A7%C3%B5es-%C3%A0-Liberdade-de-Express%C3%A3o-2015.pdf
[2] http://www.conjur.com.br/2014-fev-20/jornalista-direito-critica-impiedosa-decide-celso-mello
[3] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=212003