Por Camila MarquesRaissa MaiaNatália Damazio

A Lei nº 13.284 de 2016, conhecida como a Lei Geral das Olimpíadas, foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff no último dia 10 de maio após ter tido seu texto aprovado pelo Congresso Nacional. A Lei, que tramitou no Congresso sem nenhum debate público e com pouca repercussão dentro da sociedade, dispõe sobre as regras que serão aplicáveis durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, porém, seus artigos representam um drástico retrocesso na proteção de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos no Brasil

É importante ressaltar que a Lei Geral das Olimpíadas guarda uma enorme semelhança com a Lei Geral da Copa, uma vez que ambas trazem dispositivos que contradizem a legislação vigente, permitem a flexibilização de direitos básicos da população e afrontam conquistas democráticas. Além disso, o legado negativo deixado pela Copa do Mundo permitiu a conclusão de que os megaeventos geralmente vêm acompanhados por uma série de violações de direitos humanos, incluindo o cerceamento do espaço público, o que torna essencial, neste momento, o conhecimento da Lei Geral das Olimpíadas.

A Lei nº 13.284 de 2016 abarca em seus artigos diversas restrições aos direitos fundamentais assegurados pela legislação brasileira. O direito à liberdade de expressão é atacado, dentre outras formas, com a proibição do uso de bandeiras para outros fins que não o de “manifestação festiva e amigável”. Isso se dá porque tal previsão pode abrir precedente para uma interpretação que limita o direito à manifestação, uma vez que sinaliza que eventuais protestos e críticas às Olimpíadas não serão toleradas pelas entidades organizadoras, o que está em completa dissonância com o modelo democrático. O texto, marcado por uma vagueza considerável, dá margem excessiva para ainda mais retrocessos no campo dos direitos humanos, somando-se ao legado violatório deixado pelos últimos megaeventos, como os Jogos Panamericanos (2007), a Copa das Confederações (2013) e a Copa do Mundo (2014).

Ademais, esta lei determina que nos espaços oficiais não serão admitidos cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais contendo “mensagens ofensivas”. Porém, a própria Constituição Federal define que restrições prévias à liberdade de expressão são inconstitucionais e representam uma afronta à livre manifestação do pensamento. De modo que não cabe à Lei Geral das Olimpíadas definir previamente quais serão as expressões permitidas nos estádios.

De acordo com a lei, as entidades organizadoras possuem, com exclusividade, autorização para divulgar suas marcas, e distribuir e vender produtos oficiais. Além disso, o texto restringe a prerrogativa de realizar o comércio de rua nas áreas oficiais às entidades organizadoras, limitando o trabalho de comerciantes ambulantes e autônomos. Tais medidas inserem-se em um contexto, revelado no dossiê do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, no qual camelôs e trabalhadores informais de áreas afetadas por megaeventos são sistematicamente alvos de repressão e criminalização. Esta dinâmica revelou-se no texto da Lei Geral da Copa, que criava a ”Área de Restrição Comercial do Rio de Janeiro, compreendida pelo raio de 1 km do estádio Mário Filho” e é reforçada por meio da Lei Geral das Olimpíadas.

Análises presentes neste dossiê apontam que esse tipo de política é corriqueiro em cidades-sede de grandes eventos esportivos, e seu objetivo é aliar medidas de higienização dos espaços valorizados da cidade com a proteção dos patrocinadores dos eventos, ainda que isto represente graves violações a direitos sociais de trabalhadores autônomos da região. Para além disso, a delimitação de áreas oficiais para a circulação exclusiva de credenciados durante as Olimpíadas caracteriza uma violação ao direito de ir e vir da população.

Não precisamos voltar muito na história para saber o preço de tolerar legislações excepcionais como a Lei das Olimpíadas. Em 2014, a Copa do Mundo e todo o arcabouço jurídico excepcional aplicado durante o evento ou em momento preparatório a esse – seja por novas legislações autoritárias, seja por meio de aplicações arbitrárias das leis – nos demonstra que o fim do evento não representa o fim dos dispositivos criados para que este acontecesse. A aplicação da Operação de Garantia de Lei e Ordem (GLO) no Complexo da Maré, ocupado pelo Exército, violando os direitos mínimos dos moradores, como o direito à integridade física, à liberdade de expressão, dentre outros, foram reiteradamente denunciados e são fruto da agudização que os megaeventos trazem às nossas permanentes violências estruturais.

O fim da Copa do Mundo não representou o fim da violência de Estado e da militarização da Maré. Soma-se a esse quadro o alargamento da criminalização dos manifestantes, como a prisão dos 23 ativistas com base em um procedimento investigatório incipiente de provas, que decreta prisão provisória sob argumento de possibilidade de cometimento de crime futuro, sem nenhum respaldo na lei penal, de direitos humanos ou constitucional. O processo contra os manifestantes segue tramitando e o que vemos, dois anos depois, é a repetição de todos esses procedimentos que implicaram graves violações de direitos humanos.

Esse é o legado histórico dos megaeventos, que não vão embora com o fim formal deles. As Olimpíadas já deixaram como seu primeiro legado a tipificação do crime de terrorismo, que pode ser responsável por uma nova investida do poder punitivo em criminalizar protestos e defensores de direitos humanos, no mesmo molde do realizado em 2014 durante a Copa do Mundo. O país tem um grave histórico de manutenção dos dispositivos autoritários que cria durante períodos de exceção. E isso não será diferente com as Olimpíadas: a cada megaevento justifica-se a criação de um novo aparato repressivo e autoritário, que permanece depois de seu fim, aumentando o nosso já vasto descompromisso em garantir direitos humanos mínimos. Esse é um preço que não devemos estar dispostos a pagar.

 


Camila Marques é advogada e Coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

Raissa Maia é integrante do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

Natália Damazio é advogada e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ