Por Camila Marques, Karina Quintanilha e Pedro Teixeira
No Brasil, as rádios comunitárias desempenham um papel essencial na promoção e construção de informação diversificada voltadas para as comunidades em que atuam. Estas, normalmente, estão localizadas em regiões distantes dos grandes centros urbanos — e muitas vezes marginalizadas: comunidades rurais, indígenas, caiçaras e favelas, onde aparecem como um espaço que possibilita a participação e interação social a partir de experiências locais. Além da restrição legal para funcionar com potência limitada — máximo de 25 Watts — que alcança apenas pequenas comunidades ao redor e outras limitações que afetam o seu funcionamento, as rádios comunitárias sofrem ainda com restrições que passam pela face mais dura do Estado: o direito penal.
Este é o caso da Rádio Comunitária Coité FM, localizada na cidade de Conceição de Coité, no interior da Bahia. No último dia 8 de março, Zacarias de Almeida, mais conhecido como Piter Junior, radialista e ex-diretor da Associação Rádio Comunitária Coité Livre FM, foi condenado pela juíza Karin Almeida Weh de Medeiros, da Justiça Federal da Bahia, à pena de dois anos de detenção (convertida em serviços comunitários) e a pagar uma multa por ter mantido a rádio no ar sem autorização do Ministério das Comunicações.
Na sentença, a juíza não considerou que a Rádio Coité busca se regularizar há mais de 15 anos junto ao Ministério das Comunicações e o fato de que o funcionamento da rádio não causava nenhum dano ou interferência a outros sinais de radiodifusão. A condenação de Piter é mais um exemplo do tratamento desproporcional que muitos radiodifusores comunitários sofrem por exercer o direito à liberdade de expressão.
A criminalização das rádios comunitárias, contudo, representa grave violação à liberdade de expressão e contraria os padrões internacionais que tratam sobre o tema.
Sabe-se que a liberdade de expressão e informação são elementos essenciais dos sistemas democráticos e por isso faz-se tão importante preservá-los e sempre impulsioná-los para que os sistemas democráticos, muitas vezes frágeis, não retrocedam a regimes autoritários.
Por esse motivo, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu relatório anual de 2014, reforçou que o uso do direito penal para sancionar violações ao regime de radiodifusão é problemático ante a Convenção Americana de Direitos Humanos. Sancionar criminalmente o exercício de radiodifusão, seja comunitária ou comercial, é uma reação desproporcional do Estado, ressalta a Relatoria[1].
Os mecanismos internacionais apontam que devem ser utilizadas medidas menos gravosas à liberdade de expressão para responsabilizar eventual ilícito na prática de radiodifusão, tais como sanções administrativas ou civis. A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos já declarou que muitas vezes a proteção por vias penais de certos direitos em detrimento da liberdade de expressão são medidas desnecessárias e desproporcionais, tendo em vista que o uso do processo penal tem o forte e inibidor efeito de silenciar vozes essenciais ao debate sobre assuntos de interesse social e público.
Segundo o consagrado teste das três partes do artigo 19.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Brasil em 1992, o exercício da liberdade de expressão só pode ser sujeito a restrições expressamente previstas em lei e que sejam necessárias em um Estado democrático para proteção dos direitos e da reputação de outros, da segurança nacional, da ordem, da saúde ou da moral pública.
O rol limitado de exceções em que se considera legítimo restringir a liberdade de expressão se justifica pois sem a possibilidade de emitir opiniões, receber informações e se expressar livremente é impossível o exercício da cidadania. Assim, para proteger o direito à liberdade de expressão os principais instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil são a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo13).
O uso do Direito Penal como forma de restringir de forma ilegítima a liberdade de expressão das rádios comunitárias, entretanto, tem sido a regra adotada pelo Estado Brasileiro. Com o objetivo de compreender como se dá a judicialização das questões ligadas às rádios comunitárias no Brasil, a ARTIGO 19 realizou em 2011 uma pesquisa nos Tribunais Regionais Federais (TRF’s) das 5 regiões. Foram analisados 328 acórdãos julgados entre 01 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2010. [4]
A pesquisa evidenciou uma predominância de processos de natureza criminal contra as rádios comunitárias e viu-se pouquíssimos debates em torno da função essencial à liberdade de expressão que tais rádios representam. Dos 328 acórdãos, 152 eram de natureza penal, enquanto que 98 eram de natureza civil, 32 de natureza administrativa e o restante discutia aspectos tanto cíveis, como administrativos e constitucionais.
Constatou-se também que há nos TRFs divergências quanto à legislação penal a ser aplicada aos radiodifusores comunitários. Isto porque existem dois dispositivos penais semelhantes que determinam penas diferentes para o exercício clandestino de telecomunicação: o artigo 70 da Lei 4.117 de 1962, que institui o Código Brasileiro de Telecomunicações, e que estabelece pena de 1 a 2 anos, aumentada da metade se houver dano à terceiro, e o artigo 183 da Lei 9.427/97- a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que estabelece pena de 2 a 4 anos, aumentada da metade se houve dano a terceiro.
Em alguns TRFs o artigo 183 da LGT é aplicado pois há o entendimento de que, por ser mais recente, ele revogou o dispositivo anterior. Foi com base neste artigo que Piter Júnior, da Rádio Coité, foi denunciado pelo Ministério Público e condenado pela Justiça Federal da Bahia. Em outros TRFs o entendimento é o de que se deve ser aplicar o artigo 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações por disciplinar sanção mais amena aos radiodifusores que estiverem operando rádio comunitária sem as devidas autorizações.
Uma corrente minoritária, no entanto, entende que as rádios comunitárias não devem ser regidas por leis penais visto que configura somente ilícito administrativo, não se aplicando nenhum dos dispositivos citados anteriormente, já que desde 1998 existe regulamentação específica que determina o exercício das rádios comunitárias no Brasil (Lei 9.612 de 1998), trazendo apenas sanções administrativas em caso de ilícito. Dessa forma entendem que somente irão aplicar-se sanções penais nos casos de rádios clandestinas (rádios comerciais sem outorga) e não rádios comunitárias, que são aquelas que se caracterizam pela baixa potência do rádio transmissor, pelos seus fins sociais e não lucrativos.
Entendimento similar foi encontrado em decisão do Supremo Tribunal Federal que defendeu a sub-rogação das leis penais contra as rádios comunitárias tendo em vista a adesão do Brasil ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Tal fato implicaria na necessidade de proteger a liberdade de expressão quando em conflito com outros direitos (RE 556817 AgR, Relator(a): Ministro Eros Grau, 2ª Turma, julgado em 28/04/2009, DJe-099 DIVULG 28-05-2009 PUBLIC 29-05-2009 EMENT VOL-02362-08 PP-01517).
Decisões favoráveis às rádios comunitárias, no entanto, não são a regra nos tribunais inferiores, prevalecendo ainda a aplicação dos dispositivos penais, o que contraria inclusive posicionamentos recentes do STF, que tem aplicado em diversas ocasiões o princípio da insignificância. O entendimento é o de que não há ofensividade na conduta ou mesmo remota possibilidade destas rádios de baixa potência causarem prejuízos para outros meios de comunicação. [5]
Apesar do princípio da insignificância estar sendo cada vez mais adotado pelos ministros do STF, os TRFs e juízes de primeira instância continuam desconsiderado a baixa ofensividade da conduta para julgar ações penais contra rádios comunitárias.
No caso da rádio Coité, a própria Anatel em seu laudo técnico reconhecia que a rádio não causava nenhuma interferência prejudicial e nem risco à operação de qualquer outra atividade. Mesmo assim, a juíza condenou Piter criminalmente por entender que “a ausência de concreta potencialidade lesiva dos equipamentos utilizados na atividade de radiodifusão não serve à descaracterização do crime”, uma vez que seria um crime que independe de qualquer resultado naturalístico (crime de perigo abstrato ou crime formal), na contramão do entendimento da cúpula do Judiciário. [6]
Além disso, nas decisões analisadas na pesquisa, verifica-se que pouco se ventila a respeito da função social que as rádio comunitárias exercem, de levar informações de utilidade pública para as comunidades em que se inserem (como campanhas de vacinação, por exemplo), ou sobre a sua importância para a liberdade de expressão e participação social. A maioria das decisões é padronizada e pouco analisam sobre a realidade das rádios e de suas comunidades.
Isto demonstra o viés criminalizador que o poder público trata estas rádios e a não observância aos padrões internacionais que garantem a liberdade de expressão.
EXCESSIVA DEMORA
A fim de promover o exercício do direito à liberdade de expressão por meio das rádios comunitárias, as Relatorias Especiais da ONU, OEA, AU, e OSCE já enfatizaram que “a radiodifusão comunitária deve estar expressamente reconhecida na lei como uma forma diferenciada de meios de comunicação, deve beneficiar-se de procedimentos equitativos e simples para a obtenção de licenças, não deve ter que cumprir com requisitos tecnológicos ou de outra índole severos para a obtenção de licenças, deve beneficiar-se de tarifas de concessionária de licença e deve ter acesso a publicidade” [3].
Contudo, um dos maiores problemas que as rádios comunitárias enfrentam para regularizar a sua situação e evitar os processos criminais é a excessiva demora e burocracia por parte do Ministério das Comunicações em analisar os pedidos de outorga feito por elas. Isto explica, em parte, porque muitas dessas rádios iniciam suas atividades antes da análise dos pedidos, que chegam a ultrapassar uma década.
A Rádio Coité possui um histórico especialmente emblemático nesse aspecto, pois busca a sua regularização há quase 20 anos. O primeiro pedido de outorga feito pela rádio em 1999 foi somente analisado pelo Ministério das Comunicações(MiniCom) em 2009, quando foi informada que novo pedido deveria ser encaminhado por suposto erro nas coordenadas geográficas.
Após o arquivamento, mais dois pedidos de outorga foram feitos para regularizar a situação da rádio. O último, feito em 2013, teve o seu arquivamento anunciado no início desse ano sob a justificativa de que a rádio já estava no ar enquanto aguardava a autorização. A Rádio Coité recorreu dessa decisão alegando que passou a funcionar devido à omissão do Ministério em analisar o pedido de outorga e aguarda até o momento resposta.
Neste aspecto, a pesquisa realizada pela ARTIGO 19 revela que há entendimento comum em todos os TRFs quanto à impossibilidade do Judiciário intervir diretamente na concessão de outorga às rádios comunitárias diante da demora e omissão do Executivo, uma vez, que caso interviesse, haveria invasão da competência do MiniCom por parte do Judiciário. Os TRFs entendem, no entanto, que o Judiciário poderia fixar um prazo para que os pedidos fossem analisados.
Esse foi o pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça que evidenciou a configuração de abuso de direito em hipótese de demora injustificada do MiniCom na análise do pedido de outorga: “é fato que a análise dos requisitos para a outorga da autorização de funcionamento de rádio comunitária não pode perdurar por tempo indeterminado, situação que configuraria verdadeira deferência ao abuso de direito, devendo ser fixado prazo para a completa análise do pedido formulado administrativamente”[7].
Este quadro apresentado demonstra que urge ao Estado brasileiro modificar sua forma de tratamento às rádios comunitárias, a fim de concretizar os compromissos internacionalmente firmados para a garantia da liberdade de expressão. Para isso, deve de um lado, facilitar e responder em um prazo razoável aos pedidos de outorga, criar políticas públicas de fomento e incentivo às rádios comunitárias; e de outro, não se utilizar do direito penal para criminalizar as rádios comunitárias que aguardam indefinidamente o resultado de seus pedidos.
Camila Marques é advogada e atua no Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão da Artigo 19.
Karina Quintanilha é advogada e integrante da organização Artigo 19
Pedro Teixeira é integrante do Centro de Referência Legal da Artigo 19
REFERÊNCIAS
[1] Informe Anual de 2014 Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/Informe%20Anual%202014.pdf
[2] Corte I.D.H., A Colegiación Obligatoria de Periodistas, Opinião Consultiva OC-5/85 de 13 de novembro de 1985. Serie A No. 5, par. 31.
[3] Relatorias para Liberdade de Expressão da ONU, OEA, AU e OSCE – 2007 . Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=719&lID=2
[4] Resultados da pesquisa completa disponível no site: http://artigo19.org/jurisprudencia/analisegeral/
[5] Neste sentido o HC 104.530, Rel. Min.Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 28.09.2010, o HC 111.250 MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 23.11.2011, o HC 115.729, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, Segunda Turma, julgado em 18.12.2012 e o RHC 119.123, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 13.03.2014.
[6] Sentença disponível em: http://artigo19.org/centro/casos/detail/15
[7] AgRg no Recuro Especial Nº 1.043.779 – SC (2008/0066876-6)