Por Camila Marques e Mariana Rielli

De autoria do Executivo, o texto foi aprovado em primeiro turno na Câmara com algumas modificações, e, posteriormente, sofreu novas alterações no Senado. De volta à Câmara, foi ratificado na versão originalmente aprovada pelos deputados.

Durante toda a tramitação do PL, organizações da sociedade civil e movimentos sociais mobilizaram-se contra sua aprovação, visto que muitos dos dispositivos propostos, sob pretexto de atender a pressões externas pela adoção de leis antiterror, possuem redação excessivamente ampla, ambígua e potencialmente criminalizadora do direito à livre manifestação e expressão.

Diante de todos esses elementos, e da importância do tema, cabe questionar: a aprovação conturbada dessa lei é uma iniciativa isolada? Se não, qual é o contexto que a envolve e quais são suas implicações e consequências?

O histórico de protestos sociais no Brasil é bastante amplo e de análise complexa. É possível, porém, esboçar padrões a partir de recortes específicos quanto à natureza das manifestações, sua amplitude e o período no qual têm ocorrido.

Em relação ao processo iniciado pelas ”Jornadas de Junho” de 2013, por exemplo, há análises detalhadas que oferecem material para algumas conclusões sólidas. A violenta e desproporcional repressão do Estado verificada neste episódio, caracterizando inúmeras violações de direitos humanos, gerou desaprovação geral da população e da mídia. Ainda assim, não incorreram em uma reformulação das práticas do aparelho estatal, pelo contrário: em muitos aspectos, a repressão foi aprimorada, sobretudo por conta da ocorrência dos megaeventos esportivos dos anos seguintes (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016).

A ação do Estado brasileiro para restringir manifestantes também alcançou novas frentes, como revela o conjunto de PLs cuja tramitação iniciou em 2013 e se intensificou com a proximidade da Copa do Mundo. Os PLs contemplavam desde a proibição do uso de máscaras em manifestações até a modificação do Código Penal para instituir qualificadoras e aumentos de penas para crimes comuns se cometidos em protestos. Houve ainda projetos semelhantes ao PL 2016/2015 que também tinham o objetivo de criminalizar o terrorismo.

À luz desses fatos, as discussões sobre a atual lei antiterrorismo ganham novos contornos.

Como primeira ressalva, cabe dizer que a versão final aprovada pela Câmara contém uma excludente que, em tese, afasta a abrangência da norma sobre manifestações políticas e movimentos sociais. Entretanto, o desenrolar de todo o processo, que culminou na aprovação do projeto, assim como o espírito que o permeia, sugere que a discussão sobre esse tema permanece relevante.

Ainda que de acordo com o texto da lei a manifestação política e social não possa ser alvo de criminalização sob pretexto de corresponder à prática terrorista, o potencial caráter intimidatório da lei permanece, uma vez que autoridades policiais e judiciais poderão fazer interpretações ampliadas, inclusive com a possibilidade de iniciar a persecução penal de manifestantes para, somente após todo o constrangimento causado, afastar o uso da tipificação de “terrorismo”.

Vale lembrar que não é novidade que leis claramente inaplicáveis a casos concretos tenham sido utilizadas contra manifestantes. Em outubro de 2013, dois manifestantes, Luana Bernardo Lopes e Humberto Caporalli, foram detidos em um protesto em São Paulo e indiciados por sabotagem com base na Lei de Segurança Nacional. A lei em questão, aprovada na época da Ditadura Militar, estabelece penas de até 10 anos de reclusão. Na mesma ocasião, os dois também foram enquadrados em várias outras acusações que foram comuns em outros casos de detenções ocorridos em protestos nos últimos anos.

Posteriormente, Luana e Humberto tiveram sua prisão relaxada, pois foi reconhecida a fragilidade e inconsistência das acusações, mas, a essa altura, o desgaste e o estigma social em torno de uma suposta conduta criminosa já haviam se dado. [1]

Para além do problema acerca da aplicação da lei em si, há no PL aprovado pelo Congresso diversos dispositivos preocupantes do ponto de vista da liberdade de expressão e manifestação.

Para começar, os ”atos de terrorismo” elencados incluem a danificação de locais e objetos, caracterizando a noção de ”terrorismo contra coisa”. A depredação de bens públicos e privados — uma alegação corriqueira em casos nos quais se verifica a intimidação de manifestantes por meio de investigações criminais e processos judiciais — pode passar da caracterização usual de crime de dano à qualidade de ato terrorista, punível com reclusão de 12 a 30 anos.

De forma semelhante, o projeto aprovado determina que serão punidos com reclusão de quatro a oito anos, mais multa, aqueles que fizerem, ”publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor” (artigo 4). Se o meio utilizado para tal for a internet ou outro meio de comunicação social a pena é aumentada de um sexto a dois terços.

A ausência de elementos descritivos que deem suporte à definição de apologia, associada às penas altas instituídas, gera uma situação de ampla discricionariedade na aplicação do dispositivo, penalizando discursos de forma desproporcional. Já o aumento de pena motivado pelo uso da internet, além de demonstrativo da pouca afinidade do sistema jurídico com a dinâmica proporcionada pela comunicação em rede, demonstra uma tendência: a utilização de opiniões emitidas em redes sociais por manifestantes como elemento incriminatório em investigações.

É o caso, por exemplo, do inquérito dos 23 manifestantes indiciados no Rio de Janeiro na época da Copa do Mundo, que se utilizou da tática de ”ronda virtual” no Facebook, analisando conversas abertas, comentários em páginas de grupos e movimentos sociais.  Na ocasião, até mesmo “curtidas” foram consideradas como fortes indícios de supostas práticas criminosas ou de ordem a outros manifestantes para prática de crimes. [2]

Essa breve análise sugere que a tramitação do PL 2015/2016 não representa uma iniciativa isolada, supostamente justificável por pressões externas sobre o Brasil, mas se insere em um contexto de ações estatais de endurecimento no tratamento dos protestos sociais no país.

Tal cenário se verifica também na sofisticação do aparelho repressivo, que desde 2013 muniu-se de novas técnicas e instrumentos; na intensificação da criminalização de manifestantes via processos judiciais; e, por fim, na proliferação de projetos de lei que incrementam as leis criminais, muitas vezes de forma desnecessária e desproporcional, sob pretexto de punir supostos excessos em manifestações. A utilização dessa via, associada a todo o contexto repressivo descrito, não cumpre o papel de resguardar direitos e garantias fundamentais, mas, pelo contrário, prejudica sua efetivação, ao criar um cenário inibidor da liberdade de expressão de manifestantes e dos movimentos sociais, em geral. Importante lembrar que todas as condutas descritas no novo projeto  já estão contempladas em outras leis criminais.

Diante destes apontamentos, e tendo em vista o cenário brevemente descrito, o projeto aprovado e todo o processo que o acompanhou devem ser considerados em sua gravidade e no risco que impõem a atores engajados politicamente e àqueles que se manifestam nas ruas. Discussões mais profundas e próximas da sociedade devem ser organizadas para debater o combate ao terrorismo, com o fim de evitar que a democracia e os direitos fundamentais sejam prejudicados por qualquer ação descuidada nessa área. O veto presidencial, nesse momento, é uma necessidade.

 


 

Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.

Mariana Rielli é estudante de Direito e integrante da organização Artigo 19.

 


 

[1] http://oglobo.globo.com/brasil/estudante-presa-em-protesto-faz-desabafo-no-facebook-10325771

[2] http://www.cartacapital.com.br/revista/812/procura-se-bakunin-9772.html