Em 2016, a ativista Roberta da Silva Pereira foi condenada pelo crime de ato obsceno devido a um fato ocorrido cerca de três anos antes: em junho de 2013, participou de um ato da Marcha das Vadias em Guarulhos, ocasião em que teria desnudado os seios em protesto. A nudez parcial da ativista, prática comum em manifestações do movimento de mulheres, foi considerada ofensiva ao ‘’pudor ou a vergonha, causando um sentimento de repulsa e humilhação criado por um comportamento indecoroso’’, segundo o juiz da ação. A condenação foi mantida pelo Colégio Recursal de Guarulhos.

Polêmica muito presente nos debates sobre o ato obsceno, a natureza aberta do tipo penal em questão é evidenciada com clareza ao longo da sentença, inclusive no trecho citado. O que seria ‘’comportamento indecoroso’’ neste caso? A decisão não fornece elementos suficientes que deem maior concretude a este conceito indefinido. Faz referência, por outro lado, à questão da moralidade e a um sentimento social difuso, supostamente capaz de qualificar o ato de protesto da ativista como ofensivo exclusivamente por se efetivar através da nudez em um espaço público, ainda que não estejam presentes outros elementos comumente associados ao ato obsceno, como o caráter lascivo e sexual.

A potencial incompatibilidade entre o tipo penal previsto no art. 233 e o princípio constitucional da taxatividade é, atualmente, objeto de Recurso Extraordinário (RE 1093553) no Supremo Tribunal Federal (STF). O caso de Roberta, por sua vez, não diz respeito propriamente à delimitação do que é o ato obsceno, mas, ao contrário, da definição sobre o que com ele não se confunde: o exercício legítimo da liberdade de expressão e de protesto em uma sociedade democrática. Trata-se de conclusão que, no caso concreto, pode ser extraída tanto da dogmática penal quanto da disciplina dos direitos humanos e direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro.

Se é verdade que o bem jurídico protegido pelo art. 233, o ‘’pudor público’’, requer um certo juízo de valoração, mesmo no terreno incerto do ato obsceno entende-se que este juízo não pode estar vinculado exclusivamente à subjetividade do julgador, formada por aspectos de ordem moral e/ou religiosa, mas deve partir de uma compreensão histórico-cultural mais ampla acerca do tema.1 Nesse sentido, o contexto em que se dá a nudez é determinante para a caracterização de eventual ‘’obscenidade’’, que, conforme a doutrina majoritária, deve se revestir, ao menos em alguma medida, de caráter sexual. No caso, tratar-se de uma manifestação pública com a intenção manifesta de denunciar a violência contra as mulheres (inclusive no que diz respeito à objetificação e sexualização de seus corpos) situa o ato em um contexto incompatível com a caracterização do ato obsceno, revelando-se a atipicidade da conduta.

Por outro viés de análise, que não se ocupa dos elementos do tipo do ato obsceno, mas tem como ponto de partida às liberdades de expressão e reunião, a conclusão a que se chega no caso da ativista Roberta é a mesma. Sabe-se que ambas as liberdades, tal qual outros direitos fundamentais, são suscetíveis de restrições. O escopo desta limitações, entretanto, é relativamente reduzido, diante do papel essencial que cumprem na democracia, inclusive como veículo para a reivindicação de outros direitos. Nesse sentido, pode-se invocar doutrina e a jurisprudência do STF em casos emblemáticos2, mas também argumentos do direito internacional dos direitos humanos.

Na primeira vertente, destaca-se o entendimento do STF no caso da ‘’Marcha da Maconha’’ (ADPF 187), relatada pelo Min. Celso de Mello, que em seu voto destaca a absoluta ‘’fundamentalidade’’ da garantia da liberdade de expressão também por grupos sociais, como forma de oportunizar a efetiva propagação de suas ideias e pleitos, justamente por enfrentarem maior resistência da coletividade. Em voto histórico, o ministro foi enfático ao afirmar que a liberdade de expressão não garante somente as opiniões hegemônicas: “O estado não pode cercear o exercício do direito de reunião. Ainda que se trate de opiniões chocantes, audaciosas ou impopulares”.

O STF, inclusive, já se posicionou a respeito da problemática em torno do ato obsceno por ocasião do HC 839964 , referente ao diretor de teatro Gerald Thomas, que ao final de uma apresentação em 2003 teria mostrado as nádegas e simulado um ato de masturbação frente a plateia que o assistia, sendo, por isso, acusado de ato obsceno. No julgamento deste habeas corpus, o Tribunal considerou que para a tipificação de determinado ato como obsceno é imprescindível a análise do contexto em que se verificou o ato, concluindo que a ação penal não deveria prosseguir pois o ato incriminado foi exercido no contexto da liberdade de expressão.

No caso da ativista Roberta, a condenação por ato obsceno por desnudar os seios em protesto – sem que haja quaisquer dos elementos que compõem o tipo penal, já tão questionado, mas justamente com o objetivo de protestar contra as situações de violência enfrentadas pelas mulheres no Brasil – representa violação inequívoca à liberdade de expressão e de reunião.

A violação também é evidente sob o crivo dos padrões internacionais de direitos humanos, que oferecem importantes subsídios para o debate sobre eventuais tensões da liberdade de expressão com outros direitos e de expressões minoritárias com valores sociais hegemônicos. A Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e integrantes do ordenamento jurídico em posição supralegal, conforme jurisprudência consolidada do STF, afirmam que a liberdade de expressão e reunião só podem ser restringidas se a limitação almejada for baseada em uma previsão normativa clara, se for necessária em uma sociedade democrática e se for proporcional. Nenhum dos requisitos é preenchido no caso.

A jurisprudência interamericana, ao se debruçar sobre a ordem e a moral pública como possíveis justificativas para a restrição legítima da liberdade de expressão é enfática no entendimento de que o conceito de ‘’ordem’’ empregado não pode ser autoritário, mas deve compreender a existência de condições estruturais para que todas as pessoas, sem discriminação, possam exercer seus direitos em liberdade, com vigor e sem medo de sofrer sanções por esse exercício. Nesse sentido, o conceito de ordem pública, que inclui o aspecto moral, não pode ser invocado para suprimir um direito consagrado pela Convenção, desnaturá-lo ou privá-lo de sua real essência.

No próximo dia 19, o STF, sob relatoria da ministra Rosa Weber, irá julgar, no plenário virtual, a admissibilidade do Recurso Extraordinário, no qual se discute a frontal violação à liberdade de expressão e reunião de Roberta Pereira e de todas as mulheres que entendem que a manifestação social é um instrumento para o avanço democrático. Em tempos de tensionamento das balizas democráticas e de ataques diretos aos direitos das mulheres, o STF tem em suas mãos a obrigação de afastar o cenário de criminalização de mulheres que lutam pelo reconhecimento e efetivação dos seus direitos.

ROSA COSTA CANTAL – advogada popular e uma das responsáveis pela defesa no caso
PAULA SANT’ANNA MACHADO DE SOUZA – defensora. Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo (NUDEM).
NALIDA COELHO MONTE – defensora. Coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo (NUDEM).
CAMILA MARQUES – coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ARTIGO 19.
MARIANA RIELLI – assistente jurídica do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ARTIGO 19.